quarta-feira, 21 de março de 2018
Professor Jader
Comecei a surfar no verão de 1975. Naquela época a gente aprendia a surfar em pranchas de isopor, na espuminha da beira. Era fácil. E só íamos encarar as ondas lá na primeira arrebentação, quando já tínhamos um bom controle do básico do surfe: remar e subir na prancha.
A remada para pegar a onda e o movimento de subir na prancha com a onda em movimento, talvez seja uma das coisas mais difíceis de se fazer. Não basta força e equilíbrio. São necessários movimentos coordenados, capacidade de explosão muscular e muita, mas muita sincronia de movimentos. E tudo isso sem pensar, só no instinto, pois você sabe né, uma onda jamais é igual à outra.
Ao longos dos 43 anos em que tenho praticado este esporte fantástico, já vi e vivi muita coisa. E ele também me proporcionou coisas e experiências que vão marcar a minha vida eternamente. Fiz amigos de uma vida, viajei pelo país e pelo mundo, venci competições, ganhei algum dinheiro como competidor e, finalmente, a coisa mais importante que o surfe me deu: me fez conhecer a mulher da minha vida, que me deu a segunda mulher da minha vida, a Valentina.
Mas diferente de um esporte convencional, o surfe se entranha na vida dos seus praticantes de tal maneira que vira um estilo de vida. Uma vez surfista, a pessoa muda. Passa a pertencer a um grupo distinto, que quando olha para o mar, vê muito mais do que quem não surfa.
Mas e o professor Jader pergunta o leitor. Já chego lá.
No segundo verão depois que minha filha aprendeu a caminhar, eu achei que era hora de proporcionar para ela a sensação de correr uma onda. Deitada na prancha mesmo, sem a pretensão de subir, pois ela ainda era muito pequena. Funcionava assim: ela deitava na prancha, ali a poucos metros da areia e eu empurrava ela naquela última ondinha da beira, com as quilhas quase arrastando na areia. Para garantir a segurança dela, eu acompanhava ao lado da prancha. Mesmo assim, um dia em descuidei e a prancha virou. Ela mergulhou, engoliu um pouco de água e traumatizou. Levou outros dois verões para ter coragem de entrar no mar novamente. O trauma passou. Mas a vontade de surfar nunca apareceu, pelo menos não com a intensidade que faria dela uma surfista.
Já, já chego no Jader.
O que eu poderia ter feito de diferente? A profundidade era segura para ela, a velocidade da prancha na onda era muito pequena e eu estava ao lado dela. O problema foi que ela mergulhou e não tentou levantar (a água batia na coxa dela). Se apavorou e engoliu água.
Cheguei no Jader!
O que faltou para mim naquele dia foi experiência de professor de surfe. Se em vez de mim, fosse o professor Jader, talvez a Valentina hoje fosse minha parceira nas ondas.
Acompanho suas aulas sempre que estou no mar pegando minhas ondas e inclusive naqueles dias em que o clima não está tão divertido, com chuva, vento e frio. O cara é um trabalhador. E sempre com uma energia e um sorriso que fazem qualquer um se empolgar. Sorte dos alunos dele. Sorte nossa, que não teremos que lidar no futuro com surfistas despreparados oferecendo risco para nós e também para eles próprios.
Além disso, a Escola de Surfe do Jader, chamada Escola de Surfe Primeira Onda, faz um trabalho de inclusão social exemplar: há pouco mais de dois anos, algumas crianças de um bairro pobre de Tramandaí, fazem aulas grátis duas vezes por semana. A única coisa que o professor Jader exige delas é estarem matriculadas e frequentando uma escola. Hoje o projeto atende 20 crianças com idade entre 8 e 15 anos. O objetivo do projeto, segundo o próprio Jader me contou, é "afastar estas crianças do ambiente hostil em que vivem e ensinar-lhes o valor do esporte e da escola". E não se engane, as crianças devem mostrar o boletim para o professor: nada de notas baixas ou faltas!
O Jader surfa muito bem e é muito experiente. Ele começou a dar aulas há muitos anos e está plenamente capacitado a ensinar novatos sobre aqueles movimentos complicados que descrevi ali em cima. Nenhum curso de Educação Física o teria preparado para isto. Nenhum professor de Educação Física que não seja um surfista experiente jamais estaria apto a dar as aulas de surfe que o Jader ministra. A não ser que ele aprenda a surfar com o professor Jader.
Agora me contaram que o CREF quer suspender o direito do Jader de dar aulas (pois ele não possui o registro). Só podem estar de brincadeira! Me corrijam se eu estiver errado, mas até onde sei, não há a especialização em surfe no curso de Educação Física. Daquelas coisas que ninguém consegue entender.
Perguntei para o Jader por que ele não fazia o curso para evitar criar caso e ele me contou que chegou a começar, mas o orçamento ficou apertado e ele teve que trancar a matricula. Então tenho uma sugestão para o pessoal do CREF, uma solução onde todos sairão ganhando - principalmente os alunos da Escola de Surfe Primeira Onda (incluindo aqueles 20 que fazem parte do projeto social): ofereçam uma bolsa para ele e se quiserem pedir algo em troca, quem sabe o Jader dá aulas de especialização em surfe fazendo disto, um curso de Pós para os profissionais que já possuem o CREF?
Acredito na boa intenção do CREF, mas também acredito naquilo que minhas mais de 4 décadas de surfe me fizeram ver: não existe nada mais importante para um surfista iniciante do que uma boa orientação, transmitida de surfista para surfista.
Fico desde já na torcida por um final feliz e que eu continue testemunhando o trabalho exemplar do professor Jader junto à plataforma de Tramandaí.
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